Os assassinatos da fada verde

em 04/12/2018


Jean Lanfray era um lavrador de 31 anos que vivia com sua esposa, grávida, e duas crianças no andar de cima da casa de uma fazenda em Commugny, na Suíça. No andar de baixo, moravam seus pais e um irmão. Ex-soldado (com três anos de serviço no Exército da França), Lanfray seria descrito mais tarde como um devotado homem que trabalhava duro para sustentar uma família em crescimento.

As quatro e meia da manhã de 28 de agosto de 1905, Lanfrey levantou-se como de hábito. Ele começou seu dia com uma dose regular de absinto misturado com três partes de água. Ele e sua esposa discutiram brevemente enquanto ele insistia que ela deveria encerar suas botas. As discussões entre os dois eram frequentes ao longo daquele ano, principalmente quando ele bebia. Jean desceu, então, para encontrar seu pai e seus irmãos nas vinhas onde trabalhavam. Apesar do trabalho pesado, ele ainda encontrou tempo para parar numa taverna e beber mais álcool — mais tarde, a polícia teria a meticulosidade de documentar todo o álcool que ele consumiria naquele dia.

Após mais duas pausas para um vinho, ele encerrou os trabalhos às 16h30. Em seguida, Lanfray e seus irmãos passaram em um café onde pediram café forte misturado com brandy. Após finalmente chegar em casa, ele encontrou a esposa extremamente mal-humorada. A briga começou quando Lanfray se recusou a ordenhar as vacas, mandando a esposa fazer essa tarefa. Embora seu pai tenha tentado mediar o conflito, Jean Lanfray teve uma explosão de ira. Apesar dos protestos desesperados do pai, ele tomou seu rifle e alvejou sua esposa na cabeça. Ela morreu quase instantaneamente, enquanto o pai de Jean saia correndo em busca de socorro.

Quando a menina Rose, de quatro anos, entrou no cômodo gritou ao deparar com a mãe morta. O pai atirou no peito da menina e correu para o berço onde estava dormindo Blanche, de apenas um ano de idade. Após matar o bebê, Jean Lanfray tentou atirar na própria cabeça. Ele fez várias tentativas improvisadas. Devido ao comprimento do cano, teve que usar um barbante para puxar o gatilho. Quando conseguiu atirar, a bala errou o crânio e alojou-se em seu maxilar. Com o cadáver de Blanche sob um braço, ele foi até o celeiro e se jogou no chão, provavelmente com a intenção de sangrar até a morte.

A polícia encontrou Jean Lanfray a tempo e mandou-o para um hospital nas proximidades, onde a bala foi removida. Descrito pela polícia como “confuso e incoerente”, ele adormeceu logo após a cirurgia. Ao recobrar consciência, negou qualquer conhecimento dos assassinatos realizados. Ao ser levado a reconhecer os corpos da mulher e das filhas, ele ficou inconsolável. Uma enfermeira relatou que ele gemia sem parar: “Não fui eu quem fiz isso. Ó Deus, diga-me que eu não fiz isso. Eu amava tanto minha esposa e minhas crianças.”

Não demorou para que as pessoas começassem a buscar uma explicação para um crime tão inconcebível naquela comunidade. Quando os resultados da autópsia mostraram que a Sra. Lanfray estava grávida de quatro meses, de um menino, a população tornou-se ainda mais indignada. Num comício marcado para 5 de setembro daquele ano, o povo de Commugny ouviu orador após orador reclamando do único culpado pela violência de Lanfray: o absinto.

Destilado das flores e folhas da Artemisia absinthium, o absinto é uma bebida alcoólica licorosa e verde que era a base de uma indústria de 100 milhões de dólares na época do caso Lanfray. Longamente associado à cultura de “boemia” de artistas e intelectuais o licor (também conhecido como “fada verde”) sempre foi visto com suspeita pelos conservadores. Apesar dos esforços para banir seu uso, o consumo de absinto na França cresceu 15 vezes entre 1875 e 1913. Os resultados eram geralmente imprevisíveis pois os fabricantes de absinto também usavam aditivos incomuns (e às vezes tóxicos) para dar um “gás” extra ao produto.

O absinto tornou-se um alvo fácil para os movimentos de temperança, especialmente pelas suas propriedades psicoativas e pelos problemas de adicção que causaria. Pesquisadores médicos produziam estudos mostrando os efeitos potencialmente devastadores do absinto e até criaram um novo termo — absintismo — para denominar o uso prolongado da bebida. Entre os sintomas e efeitos de absintismo estavam ataques epilépticos, alucinações, disfunções da fala e até morte. Embora não tivessem muita validade científica, esses primeiros estudos foram o bastante para fortalecer o movimento anti-absinto em sua cruzada proibicionista.

A raiz da notoriedade do absinto está em uma de suas substâncias químicas. Antagonista do receptor de GABA, a tujona é uma cetona encontrada na Artemisia absinthium que seria capaz de causar efeitos psicodélicos naqueles que a consomem. Embora o absinto contenha apenas pequenas quantidades de tujona, os primeiros pesquisadores foram rápidos em ligar a substância aos vários sintomas psiquiátricos associados ao absintismo.

O fato de que Jean Lanfray havia consumido absinto no dia do crime (junto com várias outras doses de bebidas alcoólicas) era o bastante para justificar seu papel na tragédia. Durante o julgamento de Lanfray, em 1906, seus advogados tentaram culpar o absinto o máximo possível. Um psiquiatra suíço chamado Albert Mahaim foi convidado a testemunhar sobre o absintismo de Lanfray, mas o juiz e o promotor continuaram céticos. Jean Lanfray foi considerado culpado pelos três assassinatos e condenado a trinta anos de prisão. Poucos dias após o veredito, ele foi encontrado enforcado em sua própria cela. Mas isso não foi o bastante para impedir o alastramento de uma histeria anti-absinto.

Em 1906, após uma petição com 82 mil assinaturas, o governo suíço baniu a venda e o consumo de absinto. Quando os fabricantes de absinto tentaram reverter a decisão, a Constituição Suíça foi emendada em 1910, tornando o absinto definitivamente ilegal. A repercussão do caso Lanfray e os esforços dos movimentos proibicionistas levaram a interdições similares na Europa e nos EUA. Só ficaram de fora da onda o Reino Unido, a Dinamarca, a Suécia, a Áustria e a Espanha. Ironicamente, a proibição do absinto se deu num momento em que a cocaína e a heroína ainda eram legalizadas (mas isso não durou muito, é claro).

Traficantes continuaram a vender absinto, que, ao longo das décadas, ganhou a reputação de ser uma substância perigosamente viciante. Por volta dos anos 1990, quando ficou claro que os riscos do absinto foram grandemente exagerados, começou a tendência de sua legalização. Desde 2000, a Suíça e outros países reverteram o banimento e os Estados Unidos voltaram a permitir a importação e fabricação de absinto em 2007. Embora continue ilegal em alguns países, a fada verde parece estar de volta.

Fonte: Scienceblogs

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