O massacre do Caldeirão de Santa Cruz do deserto

em 09/05/2018


O episódio envolvendo a comunidade religiosa de Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, no município de Crato, Cariri Cearense apresenta algumas características em comum com movimentos messiânicos bastante conhecidos na história do Brasil. Como ocorreu nos casos historicamente mais conhecidos de movimentos messiânicos, a comunidade de Caldeirão de Santa Cruz do Deserto foi invadida e seus moradores foram massacrados. Esse tipo de medida além de conter um caráter punitivo, também representa uma maneira de coibir a proliferação de novos levantes sociais.

A comunidade era liderada pelo paraibano de Pilões de Dentro, José Lourenço Gomes da Silva, mais conhecido por beato José Lourenço. No Caldeirão, os romeiros e imigrantes trabalhavam todos em favor da comunidade e recebiam uma quota da produção. A comunidade era pautada no trabalho, na igualdade e na Religião.

José Lourenço trabalhava com sua família em latifúndios no sertão da Paraíba. Decidiu migrar para Juazeiro do Norte, onde conheceu Padre Cícero e ganhou sua simpatia e confiança. Em Juazeiro conseguiu arrendar um lote de terra no sitio Baixa Dantas, no município do Crato.

Beato José Lourenço, líder da comunidade
Com bastante esforço de José Lourenço e os demais romeiros, em pouco tempo a terra prosperou, e eles produziram bastante cereais e frutas. Diferente das fazendas vizinhas, na comunidade toda a produção era dividida igualmente.

José Lourenço acompanhado de seu secretário, Isaías (esquerda) e do repórter Luiz Maia

José Lourenço tornou-se líder daquele povoado, e se dedicou à religião, à caridade e a servir ao próximo. Mesmo analfabeto, era ele quem dividia as tarefas e ensinava agricultura e medicina popular. Para o sítio Baixa Dantas eram enviados, por Padre Cícero, assassinos, ladrões e miseráveis, enfim, pessoas que precisavam de ajuda para trabalhar e obter sua fé. Após o surgimento da Sedição de Juazeiro, da qual José Lourenço não participou, suas terras foram invadidas por jagunços. Com o fim da revolta, José Lourenço e seus seguidores reconstruíram o povoado.

Em 1921, Delmiro Gouveia presenteou Padre Cícero com um boi, chamado Mansinho, e o entregou aos cuidados de José Lourenço. Os inimigos de Padre Cícero, se aproveitaram disso espalhando boatos de que as pessoas estariam adorando o boi como a um Deus. Por conta disso, o boi foi morto e José Lourenço foi preso a mando de Floro Bartolomeu, tendo sido solto por influência de Padre Cícero alguns dias depois.

Caldeirão de Santa Cruz do Deserto

Em 1926, o sítio Baixa Dantas foi vendido e o novo proprietário exigiu que os membros da comunidade saíssem das terras. Com isso, Padre Cícero resolveu alojar o beato e os romeiros em uma grande fazenda denominada Caldeirão dos Jesuítas, situada no Crato, onde recomeçaram o trabalho comunitário, criando uma sociedade igualitária que tinha como base a religião. Toda a produção do Caldeirão era dividida igualmente, o excedente era vendido e, com o lucro, investia-se em remédios e querosene.

No Caldeirão cada família tinha sua casa e órfãos eram afilhados do beato. Na fazenda também havia um cemitério e uma igreja, construídos pelos próprios membros. A comunidade chegou a ter mais de mil habitantes. Com a grande seca de 1932, esse número aumentou, pois lá chegaram muitos flagelados. Após a morte de Padre Cícero, muitos nordestinos passaram a considerar o beato José Lourenço como seu sucessor.

A grande seca já foi tema de uma matéria aqui no blog Noite Sinistra (clique AQUI para ler mais). O governo brasileiro lidou com o problema construindo grandes campos de concentração, episódio que acabou conhecido como "Os currais Humanos".

Devido a muitos grupos de pessoas começarem a ir para o Caldeirão e deixarem seus trabalhos árduos, pois viam aquela sociedade como um paraíso, os poderosos, a classe dominante, começaram a temer aquilo que consideravam ser uma má influência.

O Massacre

A região do nordeste brasileiro por muito tempo sofreu com o autoritarismo dos latifundiários locais conhecidos como coronéis. As alianças políticas que esses chefes locais estabeleciam com os líderes políticos aumentavam o seu poder e legalizava os maus tratos aos moradores das localidades mais carentes. A falta de expectativa em uma vida mais justa levava a população a se submeter aos mandos e desmandos dos fazendeiros.

A comunidade de Caldeirão de Santa Cruz chamou a atenção por andar na contramão do sistema injusto imposto pelos líderes regionais e pelo governo. Sobreviventes das injustiças sociais e das intempéries impostas pelo clima seco, os seguidores do beato José Lourenço conseguiram por algum tempo viver em um regime pautado pela igualdade e fraternidade, o que desagradou os latifundiários.

Acusados de praticar um comunismo primitivo, os moradores da comunidade religiosa foram duramente perseguidos. Além do medo de que os ideais comunistas se espalhassem pelo país, os grandes fazendeiros temiam de que o exemplo colaboração fosse seguido por outros grupos da região, o que poderia ameaçar a autoridade exercida por eles.

Em 1937, ano em que Getúlio Vargas liderou um golpe que garantiu a sua permanência na presidência da república e instituiu uma severa ditadura no país, os moradores da comunidade de Caldeirão foram denunciados e acusados de praticar o comunismo. Tropas do governo federal e da polícia militar do estado do Ceará invadiram e bombardearam a localidade, deixando um saldo de milhares de mortos que após o ocorrido foram enterrados em uma vala comum.


Pesquisadores supõe que o episódio pode ter sido o maior massacre da história brasileira, em que mil pessoas foram brutalmente assassinadas. Porém, passados setenta e seis anos do ocorrido o governo e o exército negam os fatos e vão contra a tese de massacre. Os corpos dos moradores massacrados nunca foram encontrados e a falta de um documento que registre o episódio dificulta o desvendamento dos mistérios que envolvem esse movimento messiânico.

Foto com os sobreviventes do massacre
Apesar do empenho de organizações não governamentais em descobrir onde os corpos dos romeiros foram enterrados, a localização da vala que abriga os corpos nunca foi encontrada. Em 2008, a ONG cearense SOS Direitos Humanos entrou com um pedido na justiça para que o governo identificasse e proporcionasse um enterro digno aos mortos, inclusive havia um pedido de indenização que seria destinado aos descendentes dos moradores de Caldeirão. O descaso do governo fez com que a ação fosse arquivada.


Algumas fontes chegam a afirmar que na época o governo chegou a admitir que a ação tivesse causado a morte de 400 pessoas, mas nenhum documento oficial comprova essa declaração.

Caldeirão hoje

Da época da Irmandade do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, exitem ainda a capela branca, que tem como padroeiro Santo Inácio de Loyola, ao lado da ermida, duas casas, um muro de laje de um velho cemitério, um cruzeiro e no alto as ruínas da residência do beato José Lourenço.



Atualmente, 47 famílias revivem o sonho coletivo de produção idealizado por José Lourenço, num sítio denominado Assentamento 10 de Abril, a 37 km do centro do Crato. No local encontram-se 47 casas, sendo que 44 de alvenaria e uma escola, porém sem ostentar a grandeza atingida pelo então Caldeirão do beato José Lourenço.

Ruínas de uma das casas que teriam pertencido ao Caldeirão

As famílias residentes mantém uma horticultura orgânica (couve, coentro, cenoura, macaxeira, alface, pimentão e espinafre estão entre as hortaliças cultivadas) e uma lavoura para auto-abastecimento. Parte dos homens também mantém um produtivo apiário, que contribui para os rendimentos do grupo.

A ONG SOS Direitos Humanos entrou com uma Ação Civil Pública no ano de 2008 na Justiça Federal do Ceará, contra o Governo Federal do Brasil e Governo do Estado do Ceará, requerendo que o Exército Brasileiro

a) torne público o local da vala coletiva, 
b) realize a exumação dos corpos, 
c) identifique as vítimas via exames de DNA, 
d) enterre os restos mortais de forma digna, 
e) idenize no valor de R$ 500 mil, todos os familiares das vítimas e os remanescentes, 
f) inclua na história oficial, à título pedagógico, a história do massacre / chacina / genocídio do Sítio da Santa Cruz do Deserto, ou Sítio Caldeirão. A pedido do Ministério Público Federal da cidade de Juazeiro do Norte/Ceará, a ação foi extinta sem julgamento de mérito pelo juiz da 16ª Vara Federal de Juazeiro do Norte/Ceará.

Em 1986 o cineasta Rosemberg Cariry, realizou um documentário rico em depoimentos de sobrevintes do massacre. Caldeirão é um movimento considerado como uma outra Canudos.



Quando amanhecer, você já será um de nós...


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